domingo, 27 de janeiro de 2008

HERÓI.

Poesia em estado puro, o filme de Zhang Yimou é um desbunde não só para os sentidos, mas para o coração.



Com: Jet Li Lianjie, Tony Leung Chiu-wai, Maggie Cheung Man-yuk, Zhang Ziyi, Chen Daoming, Donnie Yen Ji-dan, Liu Zhongyuan, Zheng Tianyong, Qin Yan, Chang Xiaoyang. Diretor: Zhang Yimou China, 2002 – 98 min.

Trailer:

http://www.youtube.com/watch?v=xehvuJy26IA&feature=related

Cotação: 10

Herói é o primeiro filme épico feito pelo diretor chinês Zhang Yimou e uma poesia cinematográfica de uma hora e quarenta minutos. Poucas vezes me senti tão fascinado e satisfeito após sair de uma sala de cinema. Chega a ser difícil falar sobre herói porque o filme é, sem exageros, PERFEITO.

Partindo de uma premissa simples que tem como influência direta o filme Rashomon, do mestre Akira Kurosawa, Herói conta várias versões de uma mesma história. Na China antiga, no período dos Estados Guerreiros (475-221 A.C.) e antes do surgimento do primeiro imperador, a nação se dividia em sete reinos. O rei de Qin, o mais forte dos reinos, quer unificar os sete territórios, e por isso sofre constantes tentativas de assassinato. O que mais o preocupa são três assassinos de elite contratados pelos opositores de Qin. Um dia, um dos xerifes do seu reino entra em seu castelo e afirma ter derrotado sozinho os três assassinos mais temidos nos reinos. Como prova, ele traz as armas dos adversários derrotados.

Como filme de gênero do tipo Wuxia Pian (filmes de espadachins chineses), o longa tem seqüências de ação maravilhosas que ensinam aos mais impressionáveis (e aqui vai uma alfinetada direta aos fãs de Star Wars que se impressionaram com a luta de espadas no episódio 3) como é que se luta de verdade. De tão bem feitas e coreografadas, elas parecem mais um balé com espadas que uma luta.

A trilha sonora conta com um violino inspirado do veterano Itzak Perlman e é belíssima, assim como o resto do filme, o que só faz com que o espectador mergulhe ainda mais na trama.

Pena que por ser um épico que arrebatou as bilheterias dos cinemas americanos, as pessoas pensam logo que o filme TEM QUE TER ação durante toda a projeção num ritmo frenético, humor imbecil a la comédias americanas idiotas, efeitos especiais, adrenalina e explosões. Talvez isso aconteça porque já tenhamos sido (em quase maioria) domesticados a gostar desse tipo de coisa, que os que ditam a ‘moda’ dizem que é cool, enquanto filmes como Herói são tidos como coisa de Nerd. Puro preconceito de gente imbecil que se julga melhor que os outros, quando o que acontece é o contrário.


Se você ficar curioso pra ver o filme, tenha uma coisa em mente: Herói é um filme oriental. Cada frame é pra ser apreciado como uma obra de arte, um quadro de Picasso. Os silêncios estão ali para serem ouvidos e sentidos, por serem parte vital da história, não um motivo de distração e abstração pra você papear com a pessoa ao lado, mexer no celular, na bolsa...

E a ação de que falei há pouco ainda é reforçada pela absurdamente linda fotografia de Christopher Doyle, colaborador de Yimou, que é um desbunde para os sentidos. De tão bela a fotografia, chega a ser difícil de acreditar que existam lugares tão bonitos na face da terra. Destaque para a cena entre Neve Voadora e Lua, na qual todo o bosque fica vermelho e para a cena no lago, que é emocionante de linda.

As cores são um espetáculo à parte e variam de acordo com a versão da história. O vermelho significa paixão e traição; o verde, juventude; o azul, amor; o branco, a verdade, e o preto, luto. Mas apesar de ser um filme de ação, não é esta que está em voga, mas sim o elemento humano. A ação é apenas um pano de fundo para se contar uma história de revolução, amor, ideais e sacrifícios em prol de um bem maior. Além disso, o filme é de uma sensibilidade ímpar a começar pelo nome dos personagens: Céu, Espada Quebrada e Neve Voadora.

Na verdade, como poderia um filme com personagens com esses nomes ser menos que uma poesia? De todos os personagens, o que mais me cativou foi o de Tony Leung, Espada Quebrada. Dono de uma visão singular da vida e do mundo, ele chega ao ponto de abandonar uma luta para limpar uma gota d’água que cai no rosto de sua amada. A bela Maggie Cheung também está muito bem como a ressentida Neve Voadora. Zhang Ziyi, estrela de O Tigre e o Dragão e colaboradora antiga de Yimou, tem uma pequena, porém importante participação no longa como Lua, pupila de Espada Quebrada. Mas apesar de todo o elenco ser bom e de Tony Leung roubar a cena, destaco a atuação de Jet Li como o xerife Sem Nome como uma ótima e inesperada surpresa.

Quem está acostumado com os filmes que Jet Li faz nos “States” e viu Herói também deve ter se surpreendido com a sua atuação. Não me refiro às lutas, porque ele é um senhor lutador, mas à composição do personagem. Não que achasse ele um mau ator (até porque Jet nunca teve nos EUA um papel bom o suficiente para mostrar se sabe ou não atuar), pois ele é até razoável nos fracos papéis que pega na terra do tio Sam, mas quem conseguiu fazer com que ele tivesse o ótimo desempenho que tem nesse longa merece um prêmio. Minhas dúvidas em relação à sua performance dramática desapareceram por completo depois de Herói, embora saiba que ele dificilmente terá a oportunidade de mostrar esse talento nos EUA.



E para aqueles que se irritam ao ver personagens de filmes chineses voando, digo logo: em Herói eles voam, e voam muito, mas não por algum tipo de superioridade ganha através de superpoderes, e, sim, por poesia. No universo do filme aquilo é possível a qualquer um, e não a uma minoria de escolhidos ou agraciados por deuses ou entidades extraterrenas.

Além disso, eu pergunto: por que ver um chinês voando enquanto luta é tão estranho e ver um palhaço vestido de aranha escalando paredes e soltando teias pelos pulsos, ou ainda ver outro palhaço que veio de outro planeta vestindo uma sunga vermelha por cima de uma calça voando é tão normal? Muito simples: “Quando nascemos fomos programados a receber o que vocês nos empurraram com os enlatados dos USA, de 9 às 18...”



Herói é, antes de tudo, uma obra de arte. E como toda obra de arte que se preze, requer um certo grau de sensibilidade e comprometimento de quem a estiver assistindo. E pensar que se não fosse por Quentin Tarantino, provavelmente o filme nem chegaria ao ocidente...

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O filme foi distribuído no Brasil pela Miramax e pode ser facilmente achado em qualquer locadora.

domingo, 20 de janeiro de 2008

300

Como filme pipoca de ação a que se destina a ser, 300 é mais um exemplar que satisfaz seus objetivos principais: divertir e encher os olhos da geração imagem com um grande espetáculo visual. Como um divisor de águas na história do cinema, uma falsa promessa.

Estrelando: Gerard Butler, Lena Headley, Rodrigo Santoro, David Wenham, Dominic West. Distribuidora: Warner Bros. “300” EUA, 2006. 117 mins. Direção: Zack Snyder.

Site oficial: http://300themovie.warnerbros.com/

Trailer: http://www.youtube.com/watch?v=wDiUG52ZyHQ

Cotação: 6,5

Se a palavra ‘macheza’ tivesse que ser materializada, ela certamente teria como seu maior representante ‘300’. E ser macho no universo do filme não significa apenas falar grosso e sair distribuindo sopapos (há quanto tempo você não via essa palavra escrita?) em todo mundo; aqui, ser macho quer dizer falar aos berros, amar a guerra, ser musculoso, vestir apenas sunga, capa e capacete como os caras do Manowar e meter com força em sua companheira.

Baseado na HQ de Frank Miller, o filme narra a história real da batalha de Termópilas (que aqui foi fantasiada), na qual o rei Leônidas e seu grupo de 300 homens conseguiram resistir ao ataque do exército do imperador Xerxes. A batalha se tornou célebre devido os números envolvidos: enquanto os espartanos tinham apenas três centenas de combatentes e a ajuda de mais alguns povos, os persas eram milhares.



Dirigido por Zack Snyder (que estreou no cinema com a refilmagem do clássico do terror ‘Madrugada dos Mortos), muito foi dito a respeito do filme na época do seu lançamento. Entre elas, que ele revolucionaria o modo de se fazer cinema, que a força das imagens nos faz relevar as falhas narrativas (?!), que a tecnologia usada nas filmagens era original e inovadora e a pior de todas e a qual nem me darei o trabalho de comentar:"Pra que diálogos num filme sobre Esparta?". Sensacional... Discordo de todas as afirmações.

1º) Como assim revolucionar a forma de fazer cinema, cara-pálida? Em termos de estrutura narrativa não há absolutamente nada de novo, muito pelo contrário: ao incluir a fraca subtrama com a rainha Gorgo, que tenta convencer o conselho a enviar reforços aos ‘300’, além do diretor tirar o foco da ação, um dos grandes (e poucos) trunfos do filme, ainda quebra o ritmo do trabalho.

2º) É cada coisa que vou te contar, viu...? Ouvi por aí que devido à força das imagens os problemas narrativos do longa são facilmente superados. Peraí, acho que não entendi direito... Quer dizer que se você sai com uma pessoa e ela se mostra prepotente, arrogante, rude e outras coisas mais você deixa isso passar na boa se ela for bela? Então tá...

3º) No campo da tecnologia, outro engano: a propaganda que prometia um filme com efeitos únicos, intensidade e ineditismo extremo já nasceu morta, uma vez que a escolha em filmar atores de verdade em fundos verdes nos quais os cenários são inseridos digitalmente já foi usada em filmes como e Capitão Sky e o Mundo do Amanhã, Casshern e Sin City (os dois últimos excepcionais).



Sendo assim, menos mal que o filme calque todas as suas forças nas imagens e na ação. Com uma edição rápida e arisca, as seqüências de batalha são muito bem filmadas e completamente estilizadas. Muitas pessoas têm problemas com esse tipo de montagem que remete aos videoclipes, eu não. Acho até que se for usada na medida certa funciona muito bem e que foi a escolha mais certa no projeto. As acelerações e efeitos de câmera-lenta realçam as decapitações e jatos de sangue gráfico que ocorrem de 5 em 5 minutos. As cores são fortes e fiéis à HQ e a fotografia, linda. As imagens são vivas e belíssimas, destacando-se a cena de batalha no desfiladeiro e a ‘árvore de cadáveres’, que são realmente fantásticas.

Mas nem só de efeitos especiais e imagens se faz um filme. Enquanto os dois primeiros itens são soberbos, os diálogos, recheados de frases de efeito, parecem querer transformar os espectadores em mais um dos homens de Leônidas (o que não funcionou comigo) e são péssimos. E não venha me dizer que eu tenho que relevar (de novo?!) isso porque há milhões de filmes de ação por aí com diálogos inteligentes ou que, ao menos, não tentam insultar a inteligência dos espectadores.

Uma coisa que me chamou a atenção e que já tinha percebido em filmes como os da trilogia dos anéis é a forma como os estrangeiros são mostrados. Enquanto os espartanos são todos brancos, de olhos claros e de corpos esculpidos, os inimigos são negros, asiáticos, mestiços, espartanos deformados... O diálogo entre Elfíaltes (que segundo a história era um político e não uma pessoa deformada, mais uma das ‘liberdades’ tomadas pelo filme) e Leônidas deixa claro que tudo o que difere dos ideais de Esparta é visto como inútil e descartável e visto com desconfiança.



Eis um pedaço diálogo:

Elfíaltes:
Sábio Rei, eu humildemente peço por uma audiência.

Capitão da tropa espartana:
Te matarei onde está!

Leônidas:
Não dei tal ordem. Perdoe o Capitão. É um bom soldado, mas não tem muita educação.

Elfíaltes:
Não há nada o que perdoar, Bravo Rei. Sei como pareço.

Leônidas:
Veste as roupas de um espartano.

Elfíaltes:
Me chamo Efíaltes. Garoto de Esparta. O amor de minha mãe levou meus pais a fugirem de Esparta para eu não ser descartado...

Aliás, os ‘defeitos’ são sempre dos outros. Todos sabem que os gregos eram chegados numa sacanagem, que nas termas eram realizadas orgias e que nessas orgias havia relacionamentos gays, mas em 300 isso não acontece, passando a ser uma premissa dos súditos de Xerxes, conforme mostrado numa cena dentro de um dos redutos do imperador persa. Seria um pecado para um espartano participar de uma orgia desse tipo? Aqui, sim. O universo e a prerrogativa hétero-macho-man do filme não permitem, ainda que haja todo contexto homoerótico no fundo (e com trocadilho) da obra. É preciso deixar bem claro para o espectador que os espartanos são ‘perfeitos’.



Alguns dizem que pelo fato dos acontecimentos serem retratados a partir do ponto de vista de Leônidas, é preciso relevar (outra vez?!) o fato dos persas serem vistos como ‘bárbaros’. Aliás, esse assunto criou a maior quizumba lá no Irã, onde todo mundo reclamou pra caramba. Como não é bobo, Zack Snyder tratou de pedir desculpas imediata e publicamente a todos os que se sentiram ofendidos com o filme.

Quanto à violência, a maneira como ela é abordada no filme é um tanto... digamos... assustadora. Mas não no sentido de causar medo e arrepios, porque é tanta a estilização e digitalização da mesma que ela perde aquela coisa instintiva e ‘animalesca’ que transborda em filmes como “Izo” e fica um tanto artificial. Ela assusta pra valer na forma como é tratada. Se nos filmes de Park Chan-wook a violência não se justifica por si só, o que vemos aqui é a glorificação da mesma, já que os espartanos esperaram e viveram praticamente toda a vida para aquele momento (“who wants to live forever?”). E é no mínimo irônico que seja o próprio Xerxes o personagem mais sóbrio da história, já que é ele quem tenta evitar inúmeras vezes o confronto com os espartanos. Por várias vezes cheguei a pensar: “Pô, até que esse cara é sangue bom”.



O receio que tive ao assistir 300 foi o mesmo que senti ao ver as pessoas saindo do cinema depois de “Tropa de Elite” tomando como corretos, normais e dignos de aplauso comportamentos como o do Rei Leônidas e do Capitão Nascimento. Mais: querendo ser como eles. Os dois acham que estão defendendo a liberdade e o bem-estar dos seus (o que é uma verdade), mas os métodos para alcançar esses fins é que não batem com seus discursos, que são contraditórios. Leônidas prefere sacrificar seu povo a negociar e poupar todos em nome de uma glória post mortem e de uma liberdade que prega messianicamente, o que o coloca lado a lado com os mesmos bárbaros ‘persas’ de hoje, que se matam e matam por um ideal. Outra contradição no seu discurso está justamente no fato dessa mesma liberdade bradada aos quatro ventos não valer para todos, já que Esparta tinha escravos.

O elenco agarra com unhas e dentes os papéis e se as interpretações não são fabulosas, tampouco são repreensíveis, uma vez que o roteiro não se aprofunda na constituição dos personagens, limitando-se apenas a mostrar o lado ‘brucutu’ de todos. As únicas cenas em que se mostra algum tipo de ‘humanidade’ nos 300 acontecem quando Leônidas se despede da rainha Gorgo, quando manda um cordão para a mesma e quando o Capitão (SPOILER. Pule este pedaço do texto se você ainda não viu o filme) perde seu filho. Mas ele logo volta à normalidade querendo mais sangue persa. Gerard Butler encarna Leônidas com intensidade, mas não salva o filme, que tem um fraco roteiro. Rodrigo Santoro, caracterizado identicamente ao personagem a HQ, também faz um bom trabalho na pele do gigante Xerxes. O ator teve sua voz alterada digitalmente para que ela ficasse mais grave e teve que atuar olhando para baixo, para dar a impressão de que ele é um gigante.


Tivesse o diretor deixado o foco em contextos históricos, acredito que o resultado teria sido pior. Pior, sim, porque existem dois tipos de sucesso: o financeiro/comercial e o artístico. E por mais que Snyder diga que não esperava o sucesso do trabalho junto às massas, esse discurso soa batido e artificial, já que o que mais vende é violência e sexo (ou sexualidade), elementos que o filme tem de sobra. E ainda que a cena de sexo entre Leônidas e a rainha Gorgo não seja uma coisa que se diga: “nossa, que sacanagem!”, acredito que ela consegue satisfazer os mais exaltados. Desse modo, ‘300’ já nasceu pronto para a glória (se artística, comercial ou ambas, você decide).

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

FAILAN

Um caminho de pedras permeado pela esperança.


Com: Choi Min-sik, Cecilia Cheung Paak-chi, Son Pyong-ho, Gong Hyong-jin, Kim Chi-yong, Min Kyong-jin, Sin Chol-jin, Kim Yong-son. Coreia do Sul/Hong Kong, 2001 Cor – 116 min. Direção Song Hae-seong.

Nota: 9,00

Após a morte da mãe, Kang Failan (Cecilia Cheung) emigra da China buscando emprego no restaurante de uma tia que vive na cidade de Inchon, na Coréia do Sul. Ao chegar lá, descobre que ela se mudou para o Canadá, ficando sozinha num lugar que não conhece, sem poder contar com ninguém e sem dominar o idioma. Failan não busca nada além de uma vida simples, qualquer trabalho honesto e um local digno onde possa viver, e para isso terá que trabalhar duro.

Lee Kang-jae (o sempre ótimo Choi Min-sik) é um gangster acabado que não tem o respeito de ninguém na gangue em que trabalha. Apesar de ter a mesma idade de Young-sik, líder do grupo que explora a imigração ilegal, bares e prostitutas, está no mesmo nível de jovens que acabaram de entrar na organização. Por mais que tente, Kang-jae não consegue se impor perante os outros, sendo constantemente humilhado por garotos com metade da sua idade e pelo próprio chefe, que o acusa de “não ter sido cunhado para o ofício” por não ser duro o bastante quando a situação exige. Ele deseja comprar um barco para voltar à sua cidade natal e trabalhar como pescador, e um incidente lhe dará essa chance, mas tudo tem seu preço.



Falar sobre Failan é um tanto difícil pra mim porque cada frame da projeção me desafiou como poucos filmes ainda conseguem fazer. E nesse desafio fui vencido por nocaute. Sem vergonha alguma de dizer, confesso que chorei (e muito) com a história. O filme despertou em mim um sentimento não apenas de pena, mas de preocupação com os personagens, pois à medida que o longa vai se desenrolando e vamos conhecendo mais das vidas miseráveis dos protagonistas, é impossível não se emocionar com a trajetória de ambos.

E é comovente a maneira como os personagens vão se desenvolvendo. A improvável relação entre Failan e Kang-jae nos é lentamente desvendada através de flasbacks que nos mostram suas histórias separadamente. Diferente do que acontece em outros filmes do gênero, o diretor Song Hae-seong não permite que o filme abuse de situações forçadas para tocar a sensibilidade do espectador e emocionar. Isso torna a maneira como os dois personagens se ‘relacionam’ crível, já que não lhes resta mais nada nem ninguém no mundo, sendo um a esperança da qual o outro precisa para continuar vivendo.



Cecilia Cheung compõe de forma brilhante uma personagem de aparência frágil, conseguindo passar apenas através de olhares mais do que muitas palavras conseguiriam dizer. A cena em que Failan se dirige ao senhor que a indicou para o trabalho que pegou para dizer que está doente é tocante.

Choi Min-sik (conhecido do público brasileiro como Oh Dae-su, do fabuloso "Old boy") mais uma vez mostra porque é considerado um dos melhores atores da atualidade e consegue criar um personagem ambíguo que nos leva a sentimentos diversos. Kang-jae tem uma vida “que nem cachorro leva”, o que nos causa piedade, mas ao mesmo tempo age de forma repugnante em alguns momentos, o que nos causa raiva. À medida que ele vai se apegando à Failan, começa a criar a coragem necessária para fazer o que sempre quis e uma outra faceta sua se mostra. Um exemplo dessa mudança de comportamento e do brilhantismo do ator pode ser visto na cena em que o seu personagem lê uma carta num cais. Ele consegue passar um realismo tal em suas cenas que parece que não estamos assistindo a um filme, mas presenciando tudo ao vivo.


E o trabalho de composição dos atores é fundamental para o funcionamento do longa, que após um rápido prólogo no qual vemos Failan chegando à Coréia, dá a impressão de ser um filme sobre a máfia devido o foco inicial em Kang-jae. Mas não se iluda. Baseado no livro do escritor japonês Asada Jiro, este é um poderoso drama. Dizem que é um dos filmes mais tristes da década, sendo capaz de fazer a mais fria e dura pessoa se comover.

Failan realmente é um filme muito triste, mas também é uma obra que durante toda a sua visualização se mostra permeada pela esperança, a qual não é só em dias melhores, mas também na possibilidade de futuro que um pode (ou poderia) vir a representar para o outro, que se converte em gratidão e amor. Uma das grandes ironias do longa é o fato de Failan se dirigir por duas vezes a um local chamado esperança para solucionar o seu problema de permanência na Coréia.



Como diz o ditado, “a esperança é a mãe da decepção”. Talvez venha daí toda a tristeza da película.

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O filme não tem distribuição no Brasil, estando disponível em DVD coreano (Tube Entertainment, R3), no de Hong Kong (China Star, R3) e na versão americana, cujo código do disco é o da região 1 (EUA e Canadá).

domingo, 6 de janeiro de 2008

4 MESES, 3 SEMANAS E 2 DIAS

Os limites a que uma amizade pode chegar

Estrelando: Anamaria Marinca, Laura Vasiliu, Vlad Ivanov, Alexandru Potoceanu, Romênia, 2007. 109 Min. Direção: Cristian Mungiu.

Site o ficial: http://www.4months3weeksand2days.com/

Trailer: http://www.youtube.com/watch?v=Y1KCZLdLbIQ

Cotação: 9,00.

Vencedor da Palma de ouro de 2007, 4 Semanas, 3 Meses e 2 Dias, do diretor Cristian Mungiu, surpreendeu o mundo ao desbancar superproduções do cinema mundial, como Zodiac, dirigido por David Fincher (Seven e Clube da Luta). Muitos não entenderam como o filme de um diretor desconhecido e de baixo orçamento (o longa custou ‘míseros’ 600 mil Euros) conseguiu tal façanha, mas o fato é que conseguiu, e tem todos os méritos do mundo para isso.

Parte de um projeto chamado “Histórias da Era de Ouro” (do qual faz parte o também extraordinário A Morte do Sr. Lazarescu), o longa se passa em um único dia de 1987, nos momentos finais do comunismo, e conta a história de Gabitza e Otilia, duas jovens amigas que dividem um quarto na universidade. Gabitza está grávida e o aborto é proibido na Romênia. Devido à recessão no país, várias pessoas trabalham no mercado negro oferecendo este serviço. Para que ninguém desconfie, Otilia aluga um quarto num hotel e recebe o Dr. Bebe, contratado para ‘dar um jeito na situação’. Ao descobrir que a gravidez de Gabitza está num estágio mais avançado que o que ela havia dito por telefone, as exigências do médico para realizar o serviço aumentam a um preço que as duas não estão preparadas para pagar.

Assistir a esse filme foi como levar um soco no estômago do Mike Tyson. Acompanhamos o humilhante processo pelo qual as duas jovens passam para conseguir realizar o aborto como uma terceira pessoa, graças ao fabuloso trabalho de câmera de Mungiu. Os diálogos são muito naturais e não soam forçados; as cenas, longas, sem cortes, cruas e reais, impressionam. A seqüência em que Otilia se lava no quarto do hotel é poderosa (me lembro de conseguir ouvir a respiração dos outros, tamanho era o silêncio no cinema), mas é apenas uma delas. E Mungiu não nos poupa. Tal é o realismo que não há música no longa, só o som de passos nos corredores, tilintar de copos, som de isqueiros sendo acendidos, o que aumenta ainda mais a brutalidade (já imensa) do filme.

A fotografia gelada e escura e a direção sóbria pressupõem distanciamento e ausência de julgamento para com os personagens, contribuindo para aumentar a sensação de veracidade que permeia todo o trabalho.


A urgência da história é conferida ao sermos jogados de repente no meio da situação em que as duas jovens se encontram e no desenrolar da trama em atos simples como conseguir um cigarro, falar com o namorado, tentar arrumar um quarto de hotel, tentar fingir felicidade durante uma festa...

Mungiu consegue comover sem apelar para música ou closes, recursos tão utilizados para fazer a platéia se afogar em lágrimas. O trabalho dos atores é sensacional. Laura Vasiliu confere o tom certo de imaturidade a Gabitza, como podemos perceber no intenso diálogo que ela trava com o dr. Bebe. Envolta na situação real que é a prática do aborto, a conversa é perfeitamente crível e passível de identificação por qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo. Não posso esquecer de Vlad Ivanov, que faz o dr. Bebe. Ele está muito bem na pele do frio médico e o monólogo em que tenta racionalizar a situação para as moças é sensacional. Mas o filme é de Anamaria Marinca. Ela está incrível na pele Otilia, fiel amiga que fará tudo (tudo mesmo) por Gabitza. São dela os momentos mais fortes do filme, como o que ela tem de se livrar de uma vez por todas do ‘problema’ e sai no meio da noite procurando o melhor lugar para despejá-lo.


Sem levantar bandeiras pró ou contra o aborto, 4 Meses... é um filme extremamente realista, e por isso mesmo, bastante pesado. Mungiu conduz tudo com mão firme e cria uma atmosfera tão densa que nos últimos 20 minuto de projeção parece que não estamos mais assistindo a um drama, mas a um filme de terror dos mais assustadores (o que me fez lembrar de "Audition", do mestre Takashi Miike).

Poderoso olhar sobre os limites a que uma amizade pode chegar, o filme é direto, honesto, e, infelizmente, um retrato do que deve ocorrer diariamente mundo afora.

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O filme ainda não tem data de estréia nos cinemas brasileiros. Alguns boatos indicam que ele deve estrear por aqui ainda nos primeiros meses do ano, mas nenhuma informação oficial foi dada até agora.